O terceiro ou mais sexos é uma realidade de impactos culturais profundos, que não precisa afrontar a maioria conservadora, como às vezes tenta seu movimento
O movimento LGBTQIA+ reúne as variações de gênero contempladas em cada uma das iniciais — Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers, Interessexuais, Assexuais — e outras afins que possam ser encampadas no símbolo Mais. Ou Plus, para ser mais moderno.
Algum líder previdente deve ter sugerido o símbolo para estancar a pressão, comum em todo movimento político e social, para contemplar outros tantos gêneros, preferências e interesses que resultaria num abecedário de pronúncia complicada.
Do jeito que está, apesar de tantas consoantes inconciliáveis, ainda produziu alguma sonoridade de certo gosto: elegebetequiamais. Com Plus, se preferir: elegebetequiaplus.
Minhas restrições iniciais de comunicador heterossexual católico eurodescendente ao movimento, até onde pode garantir meu consciente, se devia à ignorância sobre certas classificações ou o que eu julgava superposição de gêneros e interesses.
Bissexuais e Interssexuais me pareciam redundância, até descobrir que o Inter está relacionado a pessoas que desenvolveram características hormonais ou físicas — um pênis mais atrofiado ou um clitóris mais pronunciado — que não se enquadrariam no que o movimento chama de “norma binária” masculino e feminino.
Ainda que, convenhamos, não haveria problema algum, semântico ou político, se fosse também considerado “bissexual”.
Também achava que Transexuais, referente às pessoas transformadas por cirurgia, pudessem estar na mesma categoria de Queers, relacionadas às que se transformam em outro sexo apenas com adereços, como travestis ou drag queens, “transitam entre as noções de gênero”, como dizem.
Por comunicador, ainda especulava que deveriam tentar uma sigla assexuada que abarcasse todos os gêneros e preferências, liberta do torniquete das letras de cada gênero da sigla meio infeliz. Até para servir de guarda-chuva a todos eles, atuais e futuros, sem precisar do + no final. Generologia? Genorotopia? Bi-Too? Sei lá. É só sugestão.
Tendo superado a ignorância de todas designações, minha restrição trombou nos Assexuais, não por incompreensão, mas por divergência política.
Como alguém pode tomar como bandeira algo que não tem bandeira, que é a negação acerca de algo sobre o qual não foi perguntado ou pressionado ou molestado?
Assexuais dizem respeito aos que não gostam de sexo de forma alguma. Seus representantes advogam o direito, que acham justo, de que não quererem sexo com ninguém e de nem serem cobrados por isso.
Mas não consigo imaginar como alguém pode subir um palanque para fazer um discurso a favor do direito de não querer nada.
— Companheiros, a luta continua. Temos que mobilizar nossas forças, no Congresso, no STF, nas igrejas, nos sindicatos, nas escolas, nas ruas, para garantir que ninguém seja obrigado a fazer sexo com quem quer que seja.
Não contemplo lógica, com o todo perdão por minha ignorância. Tento associar aos ateus, de uma larga e antiga faixa da sociedade, que advogam o direito de não ter religião, nem Deus, e nem de serem cobrados por isso. Não consta que tenham feito ou pretendido fazer movimentos para ir às ruas contestar quem não lhes está contestando.
Superados os problemas de interpretação e divergência política, meu ponto é que defendo até a morte o direito de as pessoas serem o que quiserem, do nascimento à morte. E de movimentos que se proponham a defendê-las contra qualquer tipo de opressão. Não tanto por questões de conceito, pré-conceito ou por alguma camuflagem inconsciente, mas por pragmatismo antes de tudo. Porque desde cedo aprendi que nada posso/podemos contra a marcha inexorável da história.
O terceiro ou mais sexos é uma realidade acachapante, de impactos na economia, nos costumes, na cultura em geral e na configuração da família, em particular. Vem superando as reações religiosas e aponta para a consolidação de uma normalidade em que sexo é problema de decisão pessoal e não de gênero ou biologia.
Quem sou eu para interferir na decisão pessoal de cada um?
Ainda há cargas enormes de preconceito a superar, muita violência por enfrentar, mas eles serão varridos para o lixo da história como foram o macho provedor, a dona de casa, as mangas bufantes, o sutiã de espuma e a cueca samba canção.
Pergunte aos jovens. Nunca houve uma geração tão desprovida de preconceito, em especial agora para essa variedade. Eles tocam essa revolução todos os dias na mesa da cozinha, contra pais que ainda não se acostumaram com as movimentações tectônicas debaixo dos seus pés.
Se nós, velhos, homens brutos e mulheres acanhadas, não quisermos essa revolução, eles a farão, no tempo deles. Ou daqui a pouco. Alguns estudos de boa consistência indicam que, em 30 anos, os sexos tradicionais, ainda hoje chamados “homem” e “mulher”, serão minoria.
Agora… eu recomendaria cautela e canja de galinha. Não tentaria meter o pé na porta da sociedade altamente conservadora, como muitas vezes se tenta, em afronta a seus valores, seus costumes e suas leis, como se suas opções devessem ser instituídas como valores morais de todos.
A pressa é inimiga da conspiração. O movimento já conquistou muito. Não chegou até aqui, sem estar vindo comendo pelas beiradas há algumas décadas, nos livros, no cinema e nas novelas, sobretudo. Sua guerra é lenta e cultural.
(Se eu fosse marqueteiro da rede de fast-food Burger King, em respeito a essa sociedade, não teria colocado crianças naturalizando os termos numa propaganda de TV. Ainda não. Não acredito que algo desse tipo seja tentado mesmo em democracias consolidadas, como as dos EUA, Canadá ou Reino Unido, e nem em sua eficácia para vender sanduíches.)
É tentador dos movimentos políticos que têm pressa, mas ninguém tem obrigação de aceitar a opção de quem quer que seja, como os LGBTQIA não se sentem obrigados a aceitar a dos diferentes. E nenhuma maioria está obrigada a se dobrar às vontades do que ela ainda entende por minoria.
Recentemente, participei de discussão acalorada sobre a expressão “cisgênero“, que o movimento criou para designar as pessoas que lhes parecem diferentes por se identificarem com o próprio sexo.
Rejeitam o sentido que se dá ao que hoje se conhece como “homem”, relativo a quem se identifica com seu pênis, e “mulher”, a quem se identifica com sua vagina. Novidade já incorporada como verbete em algum material didático, como enuncia o site especializado em educação Brasil Escola:
“Cisgênero é o indivíduo que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu. Um exemplo de cisgênero é uma pessoa que nasceu com genitália feminina e cresceu com características físicas de “mulher”, além disso adotou padrões sociais ligados ao feminino, comumente expressados em roupas, gestos, tom de voz.”
É um carimbo de claros objetivos políticos, para anular diferenças à força da semântica e forçar uma equalização de interesses a partir de uma estigmatização ao contrário. Num esforço e exemplo de dobrar a maioria à vontade da minoria, para que esta não se sinta desconfortável em suas opções.
Ou, por outra, para que um indivíduo se sinta íntegro, pleno e confortável com sua opção de vida, é preciso que tudo ao redor se modifique, valores, costumes e leis de alguns séculos ou milênios.
Não é assim que o mundo funciona. E há outros valores maiores que ainda não foram modificados, como democracia, que pressupõe um consenso a partir da vontade da maioria. Ou é isso ou vira bagunça.
>Publicado no Estado de Minas, em 1/7/2022
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